quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Crônica do Dia dos Namorados


Aconteceu no Dia dos Namorados. Naquela manhã, um pequeno pássaro amarelo entrou em nossa sala. Descia à janela, desavergonhado, e, após um olhar sorrateiro, vinha pousar sobre uma das esculturas que decoravam a grande peça de madeira, frente a um espelho que pendia na parede.  Acreditava se tratar de uma fêmea, meiga e amarelinha como ele. Cantava e girava sobre o próprio eixo, exibido, esperando chamar a atenção da moça. Fugia desconfiado quando uma pessoa qualquer adentrava o cômodo, mas logo regressava, mal se contendo, delirando amorosamente...

Alguém se apiedou da pobre criaturinha e pôs uma fruta no parapeito da janela, pois ninguém o via deixar seu santuário para se alimentar, a não ser à noite, quando finalmente se retirava, provavelmente exausto. “Maluco!” – Diziam. Mas de nada adiantavam os gritos sentidos dos moradores que tentavam, em vão, fazê-lo enxergar o engodo. O cortejo já durava dias, e a ave pequenina intimidava-se cada vez menos com a presença de pessoas no recinto. Compadecidos, nós o víamos trazer palha e gravetos para construir o ninho onde ele finalmente poderia se unir ao seu amor.

A cena começou então a me angustiar. Entre aquele ser e eu parecia haver uma sincronia, uma ligação misteriosa. Aquilo se parecia com um presente irônico e desdenhoso, para me fazer olhar o animal da mesma forma que este se via refletido. Via a mesma estupidez, o mesmo emaranhado de ilusões, o destino trágico a desenhar logo à frente.

Não há um só ser vivo que não caia vítima das quimeras que habitam o nosso mundo. Perdido em sua ilusão amorosa, o pássaro se tornou tão humano quanto eu. Incorria duas vezes em alucinação: a primeira, quando se apaixonava; a segunda, quando, sem o notar, quedava-se enamorado por si próprio, jamais se dando conta que a sua amada nunca esteve ali. O mais trágico pleonasmo que já existiu...

Somos sempre nós os culpados de nossa miséria. O sofrimento é fruto das paixões, sempre desatinadas (é intrínseco). Naquele momento, o espelho estilhaçava-se diante de mim, sangrava-me a face horrorizada. Via-me ali mesmo, a me debater nos emaranhados que havia criado.


Não sabia como me salvar. Mas poderia livrá-lo. Era crueldade permitir que aquilo continuasse por mais tempo. Com uma toalha branca, cobri o grande espelho. Findava-se a tortura. Desmantelado, via o pequeno amigo pousar novamente sobre a janela, confuso: a amada se fora. Ali permaneceu ainda por algumas horas, talvez um dia, chamando por ela. A ausência agora doía em ambos. Eventualmente, desapareceu de súbito, assim como chegara. Ainda posso ouvir-lhe o canto desesperado. Lá fora e aqui dentro.